sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Fomos à guerra e voltamos


Por Leonardo Cendón

Fazia calor na rodoviária de Pantano Grande quando paramos pela terceira ou quarta vez na viagem. A cigana velha que tentara me vender uns tapetes, agora lia minha mão. Eu viveria até os 120 e precisava fazer um sinal com dinheiro para abrir as pernas de um amor que não deu certo. Quando expliquei que não gosto de misturar dinheiro com espiritualidade, me rogou uma praga:
- Tu vais perder um braço e uma perna.
Com três horas de estrada por percorrer, não era exatamente um tiro na lua. Talvez ela acertasse. Mas àquela altura, seis horas de chão às nossas costas, não havia o que fazer.
- Então vou ter que pular num pé só - respondi, e voltei para junto dos membros da TOURU, com quem viajava. O dia era de paz. À noite, sabíamos, algo muito ruim nos esperava em Parobé.
A atmosfera de ódio que se manifestou na primeira partida da final fora irresponsavelmente alimentada ao longo da semana. Como em toda guerra, aqueles que a começaram e os que mais a incentivaram não apareceram lá para lutar. Em vez deles, pais de família e jovens apaixonados pela Associação Uruguaianense na esperança de presenciar a conquista do Campeonato Estadual de Futsal Série Bronze.
Jogar fora de casa nesses termos é ser recebido com rojão embaixo do ônibus e pedrada na janela. É ler ameaça de morte pela internet antes de sair. Dentro da quadra, melhor ser surdo ou não ter mãe. Sempre quatro ou nove ou trinta mal-encarados rosnando, as vezes a menos de um braço de distância. Chuva de cuspe.
É do jogo.
Dias antes anunciaram que não haveria policiamento no local. O ginásio não havia sido liberado pelos bombeiros e a Brigada não se responsabilizava. A presença de torcedores uruguaianenses então tornou-se uma questão de segurança. “Joguem a bola de vocês, guris. Se der problema a gente tá aqui”.
Rostos conhecidos, em bom número. Pergunte a um jogador, técnico ou massagista se isso faz alguma diferença.
Ao primeiro encontro com a torcida adversária, relaxamos. Em frente ao Ginásio Municipal de Parobé, os torcedores uniformizados locais eram em sua maioria garotos. Não seriam e não foram eles os protagonistas da selvageria mais tarde.
Cantos, bandeiras, rojões, corneta saudável, foto com criança, amizade no bar em diagonal. Uruguaiana paz e amor. Aparentemente, a missão ali seria apenas cantar o mais alto e bater palmas o mais forte que conseguíssemos, pelo maior tempo possível. Perdíamos em volume, mas a constância permitia nos ouvir a uma quadra e meia de distância quando eles cansavam.
Éramos pouco mais de sessenta, calculo, incluindo as gurias guerreiras cuja ousadia me lembrou os argentinos da Copa. Encararam nove horas de viagem sem ao menos ter ingresso garantido e boa parte delas foi impedida de entrar mesmo portando o ingresso. Ficaram ali fora, sentadas na escadaria. Os braços apoiados nos joelhos, frustradas. Expostas, porém firmes. Mais tarde eu veria uma mulher grávida tentando se proteger no meio de um cenário de guerra. Pensei nos homens que durante a semana me diziam “vamos lá, vamos cagar eles a pau”, e agora se preparavam para ouvir o jogo pelo rádio, assando uma carne a 701km dali.
Dentro do ginásio havia duas áreas destinadas à torcida uruguaianense. Numa ficaram basicamente homens. A outra, bem distante, era um cercado tipo camarote de balada onde ficou a maioria das mulheres, as que conseguiram entrar. Essa divisão foi ingrediente importante na receita que produziu o tumulto, embora eu não saiba dizer se foi espontânea ou premeditada.
A confusão se deflagrou quando elas comemoraram o 3x3 que nos daria o título a 10 segundos do fim e foram hostilizadas pela torcida local. Alguns uruguaianenses correram para acudir. Antes do meio do caminho, toparam com uma massa enfurecida que veio pra cima. Fechou o temporal na arquibancada.              
Batalha campal. Eles vinham em grandes ondas e era um mar agitado, vento contra. Os mais pacíficos ou assustados tentavam apaziguar, embora o terreno não fosse lá muito fértil para diplomacia por causa das mesas voando, punhos zunindo perto da cabeça e outros empecilhos.
Batia-se tanto quanto se apanhava, mas era preciso fazer as contas. Numa proporção de um nosso para três deles, mais os que ainda tentavam chegar para tirar uma casquinha, não seguraríamos muito tempo.
Quando já nos encurralavam, veio a fumaça amarelo esverdeado. Com olhos ardidos e gosto de soda na boca, os da linha de frente pensaram “será a polícia?”, mas não havia. Ali, os mais valentes eram a polícia. A manobra heróica de disparar jatos do extintor de incêndio, improviso de um homem astuto, dispersou os agressores tempo suficiente para descermos até a quadra.
Lá embaixo ainda estavam ambos os times, comissões técnicas e gente que também havia invadido. Quando parecia que ia acabar, o bicho pegava novamente. Brigas menores e mais espalhadas, correria e muita bateção de boca. Havia pontos de conflito e também zonas neutras, mas a boca do túnel virou Faixa de Gaza.
Alguns Parobeenses ajudavam, é verdade. Outros se ocupavam de dar uma surra num pobre diabo e a cena foi narrada ao vivo no rádio. “Trinta batendo em um”, mas Fabio Puget não sabia se o infeliz era de Uruguaiana. Quando as bofetadas são distribuídas generosamente, sem excluir o pessoal da imprensa, fica difícil saber qualquer coisa. Nossos telefones pipocaram com mensagens de amigos e parentes apavorados - não que desse para olhar o telefone naquela hora - mas este que apanhou bastante não era um dos nossos. O rapaz seria de Taquara, embora ninguém saiba explicar o que ele estaria fazendo lá. Apreciadores da pancadaria estão sempre atentos a oportunidades de praticar este esporte.
Com alguma sorte conseguimos todos nos entrincheirar no vestiário abafado. O cheiro acre de suor era desagradável, mas ninguém reclamou. Saímos de lá quando finalmente chegou meia dúzia de policiais para nos escoltar. Devem ter nos levado até o trevo. Não dá para saber com as cortinas fechadas e mochilas protegendo as janelas. Trazíamos poucos hematomas, alguns arranhões e a taça.
Na manhã de domingo fomos surpreendidos por centenas de Uruguaianenses esperando a delegação na entrada da cidade, caminhão dos bombeiros preparado para a carreata. Não há como dimensionar o significado dessa conquista para Uruguaiana. Muito menos descrever o sentimento que nos arrebata a cada jogo da Associação. Adultos choram e riem feito crianças, abraçam desconhecidos e cantam sem voz. Por algumas horas, a vida é uma epopeia e não algo que se resume em trabalhar, comer, dormir e trabalhar de novo. Se tu sabes do que estou falando, não preciso te explicar. Se não sabes, não consigo.
A semana é de festa, mas por detalhe não foi de tragédia. Agora estamos celebrando um título, mas poderíamos estar chorando uma morte. Longe do “Schmidtão”, onde a Brigada e a ROMU mantêm a civilidade, fico me perguntando: o que teria acontecido aos jogadores e comissão técnica de Uruguaiana, não fosse a presença dos poucos torcedores que lá estavam? Os faladores incitaram a violência e depois ficaram aqui, no conforto de suas casas. Eles sabem que touro em campo alheio é vaca. Eles sabem que desprotegida a delegação volta inteira, ou volta campeã. Jamais as duas coisas.
A federação omissa e delirante permite realizar um evento deste porte sem policiamento. Sugere um mínimo de quatro seguranças particulares contratados pela equipe da casa. Segundo a LIGA FUTSAL RS, oito braços e pernas são suficientes para conter outros trezentos braços e pernas que socam, chutam e arremessam mesas, capacetes, pedras, gavetas, garrafas e latões. Parece piada, mas está no regulamento. Artigo 9º, parágrafo 1º. O mesmo regulamento que estabelece no artigo 8º: as partidas só serão realizadas em ginásios que estiverem com todos os seus alvarás liberatórios em dia.
Minha vaidade quer acreditar que eu e os outros torcedores lá presentes ajudamos a trazer esta taça. Que arriscamos o pelo numa espécie de dever patriótico. Que Noninho e companhia se dispuseram a representar nossa cidade e nossa cultura sem sequer receber um salário e nós não poderíamos deixar de apoiá-los e defendê-los do perigo. A verdade é que somos um bando de inconsequentes.
Em Parobé nos gritaram “volta pra fronteira”. Voltamos campeões. Ou melhor, “a Associação voltou”.

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